O livro “Azulázio”, do poeta Anderson Kaltner, quinto livro que integra a Coleção Galo Branco de literatura contemporânea, publicada pela Editora Medita com recursos do ProAC, leva no título uma palavra que não pode ser encontrada no dicionário, não tem um sentido já definido, e surge aqui como uma nova palavra, ou neologismo, como se diz, palavra construção, palavra coisa, que concentra em si outros sentidos.
“Azulázio” nos faz lembrar de “azul”, “azulejo”, duas palavras que aparecem nos poemas do livro, e talvez de topázio, para lembrar da pedra que aparece em um dos belos versos que compõem o livro e diz: “Amor é o afago da pedra”. Tanto azul, quanto pedra, são palavras de extenso uso poético. Desde a pedra drummondiana até o azul de Mallarmé, temos a tensão que, de certa forma, se desenvolve neste livro entre o lugar dos devaneios, dos sonhos, da imensidão, do inefável, e a pedra, objeto tão comum, rasteiro, das estradas, do chão, que, no entanto, traz em si também ares de mistério ou de coisa insondada, rara.
“Azulázio” parece combinar em suas imagens essas duas direções. O sonho é uma grande presença – “que permanece por mais tempo” – ao lado dos vastos mundos interiores com seus revestimentos, seus azulejos, do frenético instante do acordar. O eu dos poemas parece encenar uma separação em relação ao ego, uma distância, o movimento do “despertencer”, insinuando o convite ritualístico ao devaneio.
Os próprios amantes, presença constante principalmente nos poemas iniciais do livro, se envolvem em mistério, têm os rostos cobertos por panos, imagem de um dos poemas que parece dialogar com o quadro de René Magritte chamado justamente “Os Amantes”, onde se vê duas pessoas de cujos rostos só se percebe os contornos através do pano que os cobre.
São presenças em fuga – “noite em fuga, poltronas em fuga” – que o livro poetiza no seu livre e experimental trabalho com a linguagem. Presenças que são, antes de tudo, não presenças, ou presenças fantasmáticas, que fogem, escapam, se dão como ausência.
Se o livro fala de sonhos, imensidão, também fala de ossos, de corpo, de coisas do cotidiano, de um facebook em decomposição, gifs que cansam, e se constrói com uma linguagem bastante próxima, feita de palavras em português, inglês, palavras inventadas ou não, gírias, modismos, afetações ou naturalidades, talvez no sentido de cumprir com um desejo (esforço) manifesto em um dos poemas: de soar macio.

E assim ele soa, macio, mesmo quando suas letras e sua forma gritam: “ESPELHAREI O CHÃO PARA TER O CÉU EM DOBRO”. Essa frase, que se repete freneticamente em um poema de traços concretistas, também reverbera e parece estar dita nas imagens/montagens/colagens que acompanham os poemas do livro. Uma delas traz uma embarcação em cujas velas se imprime o espaço cósmico e sua imensidão de estrelas. Em outra, o céu noturno com seus pontos brilhantes aparece ao fundo, em outra ainda há um planeta, sobre o qual se sobrepõe algo como uma mandala, ambos sustentados (aqui cria-se a ilusão própria das montagens e, mais uma vez, própria de Magritte) por uma outra forma circular: (talvez) a de uma vitória régia. E há ainda outro universo, no meio do qual paira solitário uma espécie de cristal.
“Azulázio” nos chega, ao que parece não sem certa intenção, como um objeto desconhecido, mais poético do que místico, pois embora seus poemas busquem esse céu em dobro, no sutil movimento de “fazer das paredes gestos lentos”, eles não pretendem nada mais do que ter o “tamanho de um cigarro”.
emudeceremos caso seja muito cedo ainda para dizer sobre
o nosso desejo de soar macio, de fazer das paredes gestos
lentos. dizemos nos despertencendo, emudeceremos caso seja
amanhã muito cedo ainda para dizer sobre o ontem do nosso
esforço de soar macio, de fazer das paredes gestos lentos.
dizemos nos despertencendo e mais uma vez
(p. 33)

* Anderson Kaltner vive em Campinas, onde faz literatura, toca bateria e estuda filosofia, sem pressa pela malha do tempo. Nos entretempos namora, cozinha com vontade, cuida das ervas do jardim e brinca com gatos. Mantém uma página na internet com seus poemas e colagens.