Jefferson Dias opta por ser o ‘poeta-corvo’, diz Wilson Alves-Bezerra

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Fotografia de Wladimir Vaz

“A escolha de vocabulários em Silenciosa Maneira coloca o corpo em primeiro plano, um corpo orgânico e transbordante de humores e secreções, um corpo aberto ao olhar, à doença e à morte”. Esta é uma das reflexões feitas por Wilson Alves-Bezerra a partir do livro Silenciosa maneira, de Jefferson Dias, terceiro livro a ser lançado no próximo dia 19 de agosto, em São Carlos, pela Coleção de Obras Inéditas “Galo Branco”, publicada pela Editora Medita com recursos do ProAC.

Na entrevista que segue abaixo, Alves-Bezerra, que também é autor do prefácio do livro de Jefferson e professor de literatura na UFSCar, fala da forma específica com que o autor trabalha no seu livro temas que atravessam a poesia ocidental, como morte, medo e melancolia. O corpo colocado em primeiro plano, a interpelação do leitor, o tom de provocação, são lembrados por ele como elementos que conferem singularidade a essa poética.

11221844_627899710646590_1955553963718315823_nBezerra também detalha, de forma bastante clara, as possíveis influências que autores como Nietzsche, Freud, Augusto dos Anjos e o poeta português Herberto Helder tiveram nessa poesia que se tensiona diante dos abismos, deixando entrever por entre suas imagens a “certeza da morte, a parceria com a morte, o exercício da morte e, claro, a própria morte”.

Diante de um país que, nas palavras de Wilson Alves-Bezerra, tem sido “de mais poetas que leitores de poesia”, ele fala de Jefferson Dias como alguém que vai urdindo sua poética de modo bastante pessoal e promissor, exercendo o papel do poeta-corvo, sendo ele mesmo aquela presença perturbadora e enigmática do poema de Poe que, dizendo apenas poucas palavras – “nunca mais” – parecia nelas fazer conter todas as outras.

Galo Branco: Entre as grandes presenças deste “Silenciosa maneira”, livro de Jefferson Dias, algumas se destacam, como aquela do medo, da melancolia e da morte. Qual seria a forma específica com que o livro aborda esses temas que atravessam a poesia desde sempre? Em outras palavras, como eles nos chegam nesse livro de poesia contemporânea?
Wilson Alves-Bezerra: Os temas do medo, da melancolia e da morte, como você diz, são onipresentes em nossa tradição da poesia ocidental; a singularidade de Jefferson Dias, como no caso de todo bom poeta, reside na forma com que os trabalha, em como os faz funcionar em sua poesia. Vejamos um exemplo: a escolha de vocabulários em Silenciosa Maneira coloca o corpo em primeiro plano, um corpo orgânico e transbordante de humores e secreções, um corpo aberto ao olhar, à doença e à morte: “Abalançar o corpo aberto: / Ressaber com – a presença aberta.” Este corpo, destituído de sua condição divina e social, se torna objeto de frequentação, observação e putrefação. A obscenidade do corpo aberto também funciona em coro com outros elementos, como a interpelação ao leitor; o poeta põe em cena a falência geral da existência humana. Se há melancolia e medo, há também um gesto crucial do poeta de entregá-los ao leitor, sob a forma de provocação. O medo, funcionando como antecipação de algo funesto que possa vir a acontecer, já serve ao poeta para legar o papel de verdugo ao leitor: “Eu abro as mãos / E não há arrependimento, / Apenas há dissimulação. / Matai-me.”, diz ele, já no poema inicial. Para ensaiar uma comparação imagética, se no século 19, o poema “The Raven”, de Poe, nos assombrava com a presença funesta que adentra pela janela e nos perturba a noite e a existência; Jefferson Dias, seguindo a trilha de Augusto dos Anjos, ensaia ele mesmo exercer este papel, isto é, opta por ser o poeta-corvo, aquele que lança imprecações contra quem se aproximar de suas páginas.

GB: Freud e o poeta português Herberto Helder parecem influências decisivas para o livro de Jefferson, assim como Nietzsche e o próprio Augusto dos Anjos. O que, especificamente, de cada um deles, você destacaria como essencial para essa poesia?
W A-B: A certeza da morte, a parceria com a morte, o exercício da morte e, claro, a própria morte. O mal estar na cultura (1930), de Freud, se não está na origem, certamente dá lugar aos versos de Silenciosa Maneira. De toda forma, essa série de autores encena o mundo sem o divino; é destas águas envenenadas que sorve Jefferson. Evidentemente seria possível detalhar longamente, mas o fundamental é que é da constatação da finitude do corpo – com Freud e Nietzsche – que parte Jefferson. De Herberto Helder há a possibilidade do exercício sistemático do delírio, que se traduz em sua escrita através de imagens poéticas que são da ordem do nonsense: “Vede: é uma nuvem de saxofones / Na topografia dos pulmões.” Helder, mesmo que com uma incursão bastante poderosa no absurdo, não deixou de revisitar o tema do divino até seu último livro; em certo momento de Poemas canhotos (2015), o recém-lançado livro do poeta português, o leitor se depara com o seguinte verso: “ainsi soit-il, diz Nosso Senhor que anda a aprender a língua na Alliance Française”. De Augusto dos Anjos, além da dimensão corvídea, já aludida na resposta anterior, está todo um universo vocabular cientitificista: Dias refere-se a hálux, ossatura, carbúnculo etc, para repisar sua – a expressão é dele – “tautológica carne”.

GB: Pelas fortes imagens, pelo vocabulário menos fácil do que sugestivo, o livro de Jefferson parece falar de tensões e atuar a partir delas. Percebemos, em sua poesia, tensões entre materialidade e metafísica, entre festins e solidão, entre o poeta – esse ser dos paradoxos – e o poema – esta fantasmagoria –entre o eu e o outro. Pra você, seria esse espaço tensivo, dialético, que, antes de excluir põe em relação elementos em um primeiro momento totalmente inconciliáveis e contraditórios, um lugar de onde nos fala e a partir do qual se realizaria a poesia brasileira mais recente?
W A-B: Eu não me atreveria a falar da “poesia brasileira mais recente”. Brasil tem sido nos últimos tempos um país de mais poetas que leitores de poesia. Há uma pluralidade para poetas vates, surrealistas, sentimentais etc. Particularmente, a poesia que encena tensões em sua própria forma e que trabalha na produção de realidades, na exploração de territórios de sonho e pesadelo, me interessa muito mais. De Jefferson Dias, em particular, cabe dizer que vai urdindo sua poética de modo bastante pessoal e promissor.

  • Wilson Alves-Bezerra é escritor, crítico literário, tradutor e professor do Departamento de Letras da UFSCar, onde atua na graduação em Letras e na pós-graduação em Estudos de Literatura. Atualmente é Coordenador de Cultura da universidade. É doutor em literatura comparada pela UERJ, mestre em língua espanhola e literaturas espanhola e hispanoamericana pela USP. Tem um livro de contos – Histórias Zoófilas e outras atrocidades (EDUFSCar / Oitava Rima), e outro de poemas, Vertigens (Iluminuras, 2015). Traduziu dois romances de Luis Gusmán – Pele e Osso (2009) e Hotel Éden (2013), ambos pela Iluminuras; sua tradução de Pele e Osso foi finalista do Prêmio Jabuti 2010 na categoria Melhor tradução literária espanhol-português. Traduziu ainda três livros de contos de Horacio Quiroga: Contos da Selva (2007), Cartas de um caçador (2007) e Contos de amor de loucura e de morte (2014), todos pela Iluminuras. Como ensaísta, lançou Reverberações da fronteira em Horacio Quiroga (Humanitas/FAPESP, 2008) e Da Clínica do Desejo a sua escrita (Mercado de Letras/FAPESP, 2012). Como resenhista na área de literatura tem textos publicados nos suplementos literários dos jornais O Globo, O Estado de São Paulo, Zero Hora, Jornal do Brasil, além do mexicano El Universal.

[…] E o corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e, fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!

(Edgar Allan Poe, O Corvo. Trad. Machado de Assis)

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Ilustração de Gustave Doré para “The Raven”